Por Roger Adan Chambi Mayta[1]
Para mim, é muito
importante compartilhar com o público brasileiro algumas reflexões sobre o
contexto plurinacional do meu país, especialmente quando no Brasil os debates
políticos sobre os povos indígenas estão ganhando cada vez mais força, graças à
crescente mobilização das lideranças, acadêmicos e ativistas indígenas que
permanecem firmes em defesa de seus direitos. Acredito que este contexto de
presença política indígena no Brasil é oportuno para abrir diálogos entre
nossos países vizinhos, os quais, embora estejam próximos geograficamente,
carecem de intercâmbios nos horizontes político e jurídico. Talvez seja a
questão indígena e a crise climática que afeta nossos territórios que abrirão uma
ponte de diálogo não só com os povos indígenas da Bolívia, mas também com os
povos de nosso continente.
Fui convidado aqui
para falar sobre a experiência plurinacional da Bolívia, especialmente as
políticas relacionadas aos povos indígenas. No entanto, sempre que falo sobre
meu país no Brasil, são poucos os que conhecem a realidade de lá, um país
vizinho. Estou me referindo principalmente ao contexto da academia brasileira,
e ainda mais no mundo jurídico. Parece que países como França, Itália,
Inglaterra, Alemanha e Estados Unidos estão mais presentes nas referências ou
horizontes acadêmicos do que o país que está ao lado, compartilhando este vasto
território que conhecemos como Amazônia. Acredito que o mesmo ocorre com o
Equador, Peru, Colômbia, Venezuela, Chile e Paraguai; para muitos pesquisadores
que conheci esses países não fazem muita diferença.
Bom, vamos
contextualizar a Bolívia. No início do século XX, o poeta, político e advogado
aymara Franz Tamayo afirmou: "O que o índio faz pela Bolívia? Tudo. E o
que a Bolívia faz pelo índio? Nada". Com essas palavras, ele destacou a
importância da presença indígena na construção do Estado boliviano e a
distância do poder político com relação aos povos indígenas. Ao revisitar nossa
história, vemos que os povos indígenas tiveram que derramar muito sangue para
viver e construir um país governado por poucos e não indígenas. Por isso, na
década de 1970, o intelectual aymara quéchua Fausto Reinaga afirmou que é falso
que a Bolívia seja um estado-nação homogêneo. Ele dizia que na Bolívia existem
duas bolivias: uma Bolívia indígena, majoritária, explorada e sem representação
política no governo, e uma segunda Bolívia branca, minoritária, que vive do
trabalho dos povos indígenas.
Essa leitura foi
enriquecida ao longo dos anos até criar o contexto para que uma pessoa indígena
assumisse a presidência da Bolívia e, pelo mandato do povo, reestruturasse o
Estado criado pelas minorias não indígenas para um Estado que represente todos
os povos, todas as nações indígenas da Bolívia. É importante ressaltar que,
apesar de em cada censo populacional se tentar reduzir a quantidade de povo
indígena, a Bolívia é um país com uma maioria indígena. Nos últimos dados do
censo de 2012, foi relatado que 45% das pessoas se autodeclararam como
pertencentes a um povo indígena.
Ao contrário do
Brasil, na Bolívia, os povos indígenas ocupam quase todo o território, e é por
isso que atualmente temos uma representação indígena na Câmara dos Deputados,
no Senado, nos ministérios, nas prefeituras. Tivemos um presidente indígena e
agora temos um vice-presidente indígena. Essa característica faz com que a
Bolívia tenha no centro de seus debates, especialmente relacionados à
plurinacionalidade, um foco nos povos indígenas. No entanto, é importante dizer
também que esta característica é fruto das inúmeras lutas, marchas e greves
indígenas contra o ainda colonialismo republicano do Estado boliviano. Ou seja,
este contexto não é um presente de um presidente ou de um partido político. É a
soma de um longo processo de luta dos povos aymaras, quéchuas, guaranis, entre
outros povos, pela autodeterminação e pelo respeito de seus direitos.
No Acampamento Terra Livre, abril de 2024, Brasília. |
O Estado Plurinacional da Bolívia
A Bolívia se
constituiu como Estado Plurinacional com a promulgação da Nova Constituição
Política do Estado em 7 de fevereiro de 2009. A aposta dos movimentos indígenas
na assembleia constituinte foi descolonizar o Estado a partir do próprio
Estado, ou seja, fazer com que o Estado, essa máquina que historicamente foi
usada para manter a opressão dos povos indígenas, se tornasse um instrumento de
transformação social e de justiça social. Por isso, a nova Constituição foi
determinante, pois nesse texto estão inseridas as diretrizes para o novo modelo
de Estado.
A primeira
característica é que a Bolívia é um país que se funda na pluralidade e tem
pluralismo político, econômico, cultural, linguístico e jurídico. Ou seja,
reconhece-se que a Bolívia nasce na diversidade, e essa pluralidade de nações
indígenas constitui a base do país. É por isso que temos diferentes formas de
criar e fazer economia, política, cultura, língua e de fazer justiça. Essa é a
base da criação da Bolívia como um Estado Unitário Social de Direito Plurinacional
Comunitário, livre, independente, soberano, democrático, intercultural,
descentralizado e com autonomias, conforme estabelecido pelo artigo primeiro da
constituição.
Por outro lado, são
reconhecidos trinta e seis idiomas indígenas como oficiais do Estado
Plurinacional, além do castelhano, e o povo boliviano é constituído pela união
de todos os bolivianos juntamente com os povos indígenas, povos interculturais
e povo afro boliviano. Os princípios que regem o novo Estado são baseados nos
princípios ético-morais dos povos indígenas, como o Bem Viver, conhecido como
Suma Qamaña no idioma aymara, o Ñandereko, que traduzido do Guarani significa
Vida Boa, o Qhapaj ñam, que traduzido do quéchua significa caminho nobre, entre
outros princípios indígenas. Além disso, um dos principais objetivos do Estado
é conformar uma sociedade fundamentada na descolonização, conforme estabelecido
pelo artigo nono da constituição.
Tudo isso será
celebrado pelos povos indígenas, que encontraram na nova Constituição seus símbolos,
seus idiomas, seus princípios e seus direitos. Na área jurídica, os sistemas de
justiça indígenas, que historicamente foram anulados e discriminados pelo
monismo jurídico, terão um papel fundamental na reivindicação dos direitos dos
povos indígenas. O artigo cento e setenta e nove estabelece que a justiça na
Bolívia é única, mas se divide em quatro jurisdições: a jurisdição ordinária,
dos juízes e advogados; a jurisdição especial dos militares; a jurisdição
agroambiental, também composta por juízes e advogados, para resolver questões
relacionadas à terra e ao meio ambiente; e a jurisdição indígena originária
campesina, onde as autoridades indígenas podem resolver seus próprios conflitos
de acordo com suas próprias normativas e práticas de fazer justiça. No mesmo
artigo, é estipulado que tanto a jurisdição ordinária quanto a jurisdição
indígena têm a mesma igualdade hierárquica. Ou seja, tanto a justiça feita por
uma autoridade indígena quanto a justiça feita por um juiz ordinário têm o
mesmo valor.
Neste cenário,
podemos incluir também os direitos de autodeterminação dos povos indígenas, as
autonomias territoriais indígenas e a conformação do Tribunal Constitucional
Plurinacional como o máximo órgão de controle constitucional, onde deve haver a
presença de magistrados que representem a característica plurinacional da
Bolívia, ou seja, que também devem incluir magistrados indígenas, eleitos por
voto universal, entre muitos outros aspectos considerados muito progressistas
na região e que são objeto de pesquisa pelo Novo Constitucionalismo
Latino-Americano. Mas temos que nos perguntar, como estão sendo desenvolvidos estas
características no país após mais de quatorze anos do projeto plurinacional?
A eficácia da Constituição Plurinacional
Lembro-me de uma
reunião junto com autoridades indígenas aymaras, onde um jilakata, que é o
termo originário para se referir à principal autoridade do território, ao ver
que não conseguia fazer respeitar os direitos coletivos frente à jurisdição
ordinária, com os olhos quase vermelhos, dizia: "Em que momento nós, os
povos indígenas, que sempre lutávamos nas ruas contra o Estado, acreditamos que
poderíamos mudar nossa condição por meio da lei, da constituição?" Essa
frustração era compartilhada também em outro cenário, onde uma autoridade
aymara também dizia que “para que serve ganhar um amparo constitucional, um
conflito de competências jurisdicionais contra a jurisdição ordinária, se na
hora de querer fazer respeitar seus direitos ninguém dá atenção? Ninguém leva a
sério a jurisdição dos povos indígenas”. Após mais de quatorze anos do Estado
Plurinacional, poderíamos dizer que a Bolívia teve um contexto de reformas
jurídicas onde muitas delas são amparadas no Bem Viver, como as leis dos
direitos da mãe terra, mas ao mesmo tempo, eram promulgadas outras leis que
incentivavam a expansão da fronteira agrícola e o uso de agrotóxicos.
A Bolívia
conseguiu descolonizar os corpos dos políticos das câmaras dos deputados e
senadores, onde historicamente só havia pessoas de terno e gravata. Agora,
existe presença de representantes de diversos povos indígenas do país. No
entanto, para o povo fora do governo, a realidade não mudou. Pelo contrário,
embora pareça paradoxal, as políticas do estado plurinacional, em vez de
potencializar os povos indígenas, parecem ter limitado as ações deles. Por
exemplo:
·
A ideia do indígena antes do reconhecimento das 36
línguas oficiais indígenas da Bolívia era mais diversa no território boliviano.
O indígena era percebido tanto nas áreas rurais quanto nas áreas urbanas. No
entanto, com as políticas do governo plurinacional, reforçou-se a ideia de que
o indígena só existe na área rural, vestindo roupas tradicionais e seguindo
formas de organização "originárias", enquanto outras formas de ser
indígena foram marginalizadas e negadas.
·
Quanto à justiça indígena, o exercício da jurisdição
indígena está regulamentado por uma lei (Lei nº 073) de natureza ordinária, que
reduz o caráter coletivo dos sistemas jurídicos indígenas, limitando as
autoridades indígenas a não resolver conflitos que historicamente resolviam em
áreas civil, penal, agrária, ambiental, entre outros.
·
Ao incorporar os sistemas jurídicos indígenas ao marco
da lei, eles perdem o caráter oral, rápido, coletivo e holístico, tornando-se
mais um apêndice da burocracia jurídica e positivando as formas indígenas de
administração da justiça.
·
As principais organizações indígenas do país formaram
um bloco histórico, chamado Pacto de Unidade, que tem presença no governo. No
entanto, ao longo do tempo, essas organizações perderam o vínculo legítimo com
as bases, tornando-se apenas espaços de interesses laborais dentro do governo.
·
Paradoxalmente, o extrativismo se intensificou no
contexto do Estado Plurinacional. Para muitas empresas transnacionais, foi mais
eficaz explorar a terra sob o manto discursivo do Bem Viver do que sob
políticas neoliberais. Esse cenário já foi amplamente estudado por intelectuais
como Edgardo Lander e Eduardo Gudynas no contexto progressista
latino-americano.
·
O fato de criar uma estratégia midiática para vincular
um processo político que vem de longa data, de muitas lutas indígenas, a um
único líder e a um único partido, coloca em risco o projeto do Estado
Plurinacional.
Poderíamos
enumerar muitos exemplos das incoerências entre o discurso, a normativa e a
realidade objetiva para os povos indígenas da Bolívia. No entanto, meu objetivo
nesta oportunidade é apenas fornecer um contexto resumido da plurinacionalidade
desde o Estado para fazer uma crítica construtiva a um cenário político que
muitas vezes é idealizado. Como povos indígenas e pesquisadores, se queremos
construir um presente e futuro melhores, devemos olhar com coragem para as
críticas ao nosso redor.
No caso boliviano,
o Estado não está conseguindo descolonizar o estado a partir do próprio estado.
Ele representa uma continuidade da mesma estrutura, com outros corpos e com o
nome de Estado Plurinacional. Por isso que como pesquisadores do direito,
devemos analisar a natureza do estado em nosso continente e refletir sobre o
tipo de ideologia jurídica. Até que ponto as revoluções jurídicas são
revoluções no sentido estrito, ou são apenas reformas da velha forma estatal
burguesa?
Gostaria de
encerrar minha fala com os apontamentos feitos pelo advogado indígena quéchua
do Equador, Raúl Llasag, que em um cenário quase semelhante ao da Bolívia, no
seu país, diante das falências da pluralidade e do pluralismo jurídico desde o
Estado, propõe reforçar essa pluralinacionalidade e pluralismo jurídico de
baixo para cima, fora do Estado. Nossas sociedades são plurais, são
plurinacionais, antes da chegada do estado moderno. Temos que cultivar nossas
próprias formas de organização e evitar sermos domesticados pelo Estado.
Muito obrigado
pela atenção.
Final de abril de 2024, Goiânia, Brasil.
[1] Parte deste texto foi apresentada no conversatório "Estado
Plurinacional e Políticas Indígenas", organizado pela Ordem dos Advogados
do Brasil, São Paulo, em 30 de abril de 2024.