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DESAFIOS DA PLURINACIONALIDADE: Reflexões sobre o Estado e os Povos Indígenas na Bolívia

Por Roger Adan Chambi Mayta[1] 

Para mim, é muito importante compartilhar com o público brasileiro algumas reflexões sobre o contexto plurinacional do meu país, especialmente quando no Brasil os debates políticos sobre os povos indígenas estão ganhando cada vez mais força, graças à crescente mobilização das lideranças, acadêmicos e ativistas indígenas que permanecem firmes em defesa de seus direitos. Acredito que este contexto de presença política indígena no Brasil é oportuno para abrir diálogos entre nossos países vizinhos, os quais, embora estejam próximos geograficamente, carecem de intercâmbios nos horizontes político e jurídico. Talvez seja a questão indígena e a crise climática que afeta nossos territórios que abrirão uma ponte de diálogo não só com os povos indígenas da Bolívia, mas também com os povos de nosso continente. 

Fui convidado aqui para falar sobre a experiência plurinacional da Bolívia, especialmente as políticas relacionadas aos povos indígenas. No entanto, sempre que falo sobre meu país no Brasil, são poucos os que conhecem a realidade de lá, um país vizinho. Estou me referindo principalmente ao contexto da academia brasileira, e ainda mais no mundo jurídico. Parece que países como França, Itália, Inglaterra, Alemanha e Estados Unidos estão mais presentes nas referências ou horizontes acadêmicos do que o país que está ao lado, compartilhando este vasto território que conhecemos como Amazônia. Acredito que o mesmo ocorre com o Equador, Peru, Colômbia, Venezuela, Chile e Paraguai; para muitos pesquisadores que conheci esses países não fazem muita diferença.

Bom, vamos contextualizar a Bolívia. No início do século XX, o poeta, político e advogado aymara Franz Tamayo afirmou: "O que o índio faz pela Bolívia? Tudo. E o que a Bolívia faz pelo índio? Nada". Com essas palavras, ele destacou a importância da presença indígena na construção do Estado boliviano e a distância do poder político com relação aos povos indígenas. Ao revisitar nossa história, vemos que os povos indígenas tiveram que derramar muito sangue para viver e construir um país governado por poucos e não indígenas. Por isso, na década de 1970, o intelectual aymara quéchua Fausto Reinaga afirmou que é falso que a Bolívia seja um estado-nação homogêneo. Ele dizia que na Bolívia existem duas bolivias: uma Bolívia indígena, majoritária, explorada e sem representação política no governo, e uma segunda Bolívia branca, minoritária, que vive do trabalho dos povos indígenas.

Essa leitura foi enriquecida ao longo dos anos até criar o contexto para que uma pessoa indígena assumisse a presidência da Bolívia e, pelo mandato do povo, reestruturasse o Estado criado pelas minorias não indígenas para um Estado que represente todos os povos, todas as nações indígenas da Bolívia. É importante ressaltar que, apesar de em cada censo populacional se tentar reduzir a quantidade de povo indígena, a Bolívia é um país com uma maioria indígena. Nos últimos dados do censo de 2012, foi relatado que 45% das pessoas se autodeclararam como pertencentes a um povo indígena.

Ao contrário do Brasil, na Bolívia, os povos indígenas ocupam quase todo o território, e é por isso que atualmente temos uma representação indígena na Câmara dos Deputados, no Senado, nos ministérios, nas prefeituras. Tivemos um presidente indígena e agora temos um vice-presidente indígena. Essa característica faz com que a Bolívia tenha no centro de seus debates, especialmente relacionados à plurinacionalidade, um foco nos povos indígenas. No entanto, é importante dizer também que esta característica é fruto das inúmeras lutas, marchas e greves indígenas contra o ainda colonialismo republicano do Estado boliviano. Ou seja, este contexto não é um presente de um presidente ou de um partido político. É a soma de um longo processo de luta dos povos aymaras, quéchuas, guaranis, entre outros povos, pela autodeterminação e pelo respeito de seus direitos.


No Acampamento Terra Livre, abril de 2024, Brasília. 

O Estado Plurinacional da Bolívia

A Bolívia se constituiu como Estado Plurinacional com a promulgação da Nova Constituição Política do Estado em 7 de fevereiro de 2009. A aposta dos movimentos indígenas na assembleia constituinte foi descolonizar o Estado a partir do próprio Estado, ou seja, fazer com que o Estado, essa máquina que historicamente foi usada para manter a opressão dos povos indígenas, se tornasse um instrumento de transformação social e de justiça social. Por isso, a nova Constituição foi determinante, pois nesse texto estão inseridas as diretrizes para o novo modelo de Estado.

A primeira característica é que a Bolívia é um país que se funda na pluralidade e tem pluralismo político, econômico, cultural, linguístico e jurídico. Ou seja, reconhece-se que a Bolívia nasce na diversidade, e essa pluralidade de nações indígenas constitui a base do país. É por isso que temos diferentes formas de criar e fazer economia, política, cultura, língua e de fazer justiça. Essa é a base da criação da Bolívia como um Estado Unitário Social de Direito Plurinacional Comunitário, livre, independente, soberano, democrático, intercultural, descentralizado e com autonomias, conforme estabelecido pelo artigo primeiro da constituição.

Por outro lado, são reconhecidos trinta e seis idiomas indígenas como oficiais do Estado Plurinacional, além do castelhano, e o povo boliviano é constituído pela união de todos os bolivianos juntamente com os povos indígenas, povos interculturais e povo afro boliviano. Os princípios que regem o novo Estado são baseados nos princípios ético-morais dos povos indígenas, como o Bem Viver, conhecido como Suma Qamaña no idioma aymara, o Ñandereko, que traduzido do Guarani significa Vida Boa, o Qhapaj ñam, que traduzido do quéchua significa caminho nobre, entre outros princípios indígenas. Além disso, um dos principais objetivos do Estado é conformar uma sociedade fundamentada na descolonização, conforme estabelecido pelo artigo nono da constituição.

Tudo isso será celebrado pelos povos indígenas, que encontraram na nova Constituição seus símbolos, seus idiomas, seus princípios e seus direitos. Na área jurídica, os sistemas de justiça indígenas, que historicamente foram anulados e discriminados pelo monismo jurídico, terão um papel fundamental na reivindicação dos direitos dos povos indígenas. O artigo cento e setenta e nove estabelece que a justiça na Bolívia é única, mas se divide em quatro jurisdições: a jurisdição ordinária, dos juízes e advogados; a jurisdição especial dos militares; a jurisdição agroambiental, também composta por juízes e advogados, para resolver questões relacionadas à terra e ao meio ambiente; e a jurisdição indígena originária campesina, onde as autoridades indígenas podem resolver seus próprios conflitos de acordo com suas próprias normativas e práticas de fazer justiça. No mesmo artigo, é estipulado que tanto a jurisdição ordinária quanto a jurisdição indígena têm a mesma igualdade hierárquica. Ou seja, tanto a justiça feita por uma autoridade indígena quanto a justiça feita por um juiz ordinário têm o mesmo valor.

Neste cenário, podemos incluir também os direitos de autodeterminação dos povos indígenas, as autonomias territoriais indígenas e a conformação do Tribunal Constitucional Plurinacional como o máximo órgão de controle constitucional, onde deve haver a presença de magistrados que representem a característica plurinacional da Bolívia, ou seja, que também devem incluir magistrados indígenas, eleitos por voto universal, entre muitos outros aspectos considerados muito progressistas na região e que são objeto de pesquisa pelo Novo Constitucionalismo Latino-Americano. Mas temos que nos perguntar, como estão sendo desenvolvidos estas características no país após mais de quatorze anos do projeto plurinacional?

A eficácia da Constituição Plurinacional

Lembro-me de uma reunião junto com autoridades indígenas aymaras, onde um jilakata, que é o termo originário para se referir à principal autoridade do território, ao ver que não conseguia fazer respeitar os direitos coletivos frente à jurisdição ordinária, com os olhos quase vermelhos, dizia: "Em que momento nós, os povos indígenas, que sempre lutávamos nas ruas contra o Estado, acreditamos que poderíamos mudar nossa condição por meio da lei, da constituição?" Essa frustração era compartilhada também em outro cenário, onde uma autoridade aymara também dizia que “para que serve ganhar um amparo constitucional, um conflito de competências jurisdicionais contra a jurisdição ordinária, se na hora de querer fazer respeitar seus direitos ninguém dá atenção? Ninguém leva a sério a jurisdição dos povos indígenas”. Após mais de quatorze anos do Estado Plurinacional, poderíamos dizer que a Bolívia teve um contexto de reformas jurídicas onde muitas delas são amparadas no Bem Viver, como as leis dos direitos da mãe terra, mas ao mesmo tempo, eram promulgadas outras leis que incentivavam a expansão da fronteira agrícola e o uso de agrotóxicos.

A Bolívia conseguiu descolonizar os corpos dos políticos das câmaras dos deputados e senadores, onde historicamente só havia pessoas de terno e gravata. Agora, existe presença de representantes de diversos povos indígenas do país. No entanto, para o povo fora do governo, a realidade não mudou. Pelo contrário, embora pareça paradoxal, as políticas do estado plurinacional, em vez de potencializar os povos indígenas, parecem ter limitado as ações deles. Por exemplo:

·         A ideia do indígena antes do reconhecimento das 36 línguas oficiais indígenas da Bolívia era mais diversa no território boliviano. O indígena era percebido tanto nas áreas rurais quanto nas áreas urbanas. No entanto, com as políticas do governo plurinacional, reforçou-se a ideia de que o indígena só existe na área rural, vestindo roupas tradicionais e seguindo formas de organização "originárias", enquanto outras formas de ser indígena foram marginalizadas e negadas.

·         Quanto à justiça indígena, o exercício da jurisdição indígena está regulamentado por uma lei (Lei nº 073) de natureza ordinária, que reduz o caráter coletivo dos sistemas jurídicos indígenas, limitando as autoridades indígenas a não resolver conflitos que historicamente resolviam em áreas civil, penal, agrária, ambiental, entre outros.

·         Ao incorporar os sistemas jurídicos indígenas ao marco da lei, eles perdem o caráter oral, rápido, coletivo e holístico, tornando-se mais um apêndice da burocracia jurídica e positivando as formas indígenas de administração da justiça.

·         As principais organizações indígenas do país formaram um bloco histórico, chamado Pacto de Unidade, que tem presença no governo. No entanto, ao longo do tempo, essas organizações perderam o vínculo legítimo com as bases, tornando-se apenas espaços de interesses laborais dentro do governo.

·         Paradoxalmente, o extrativismo se intensificou no contexto do Estado Plurinacional. Para muitas empresas transnacionais, foi mais eficaz explorar a terra sob o manto discursivo do Bem Viver do que sob políticas neoliberais. Esse cenário já foi amplamente estudado por intelectuais como Edgardo Lander e Eduardo Gudynas no contexto progressista latino-americano.

·         O fato de criar uma estratégia midiática para vincular um processo político que vem de longa data, de muitas lutas indígenas, a um único líder e a um único partido, coloca em risco o projeto do Estado Plurinacional.

Poderíamos enumerar muitos exemplos das incoerências entre o discurso, a normativa e a realidade objetiva para os povos indígenas da Bolívia. No entanto, meu objetivo nesta oportunidade é apenas fornecer um contexto resumido da plurinacionalidade desde o Estado para fazer uma crítica construtiva a um cenário político que muitas vezes é idealizado. Como povos indígenas e pesquisadores, se queremos construir um presente e futuro melhores, devemos olhar com coragem para as críticas ao nosso redor.

No caso boliviano, o Estado não está conseguindo descolonizar o estado a partir do próprio estado. Ele representa uma continuidade da mesma estrutura, com outros corpos e com o nome de Estado Plurinacional. Por isso que como pesquisadores do direito, devemos analisar a natureza do estado em nosso continente e refletir sobre o tipo de ideologia jurídica. Até que ponto as revoluções jurídicas são revoluções no sentido estrito, ou são apenas reformas da velha forma estatal burguesa?

Gostaria de encerrar minha fala com os apontamentos feitos pelo advogado indígena quéchua do Equador, Raúl Llasag, que em um cenário quase semelhante ao da Bolívia, no seu país, diante das falências da pluralidade e do pluralismo jurídico desde o Estado, propõe reforçar essa pluralinacionalidade e pluralismo jurídico de baixo para cima, fora do Estado. Nossas sociedades são plurais, são plurinacionais, antes da chegada do estado moderno. Temos que cultivar nossas próprias formas de organização e evitar sermos domesticados pelo Estado.

Muito obrigado pela atenção.

Final de abril de 2024, Goiânia, Brasil.



[1] Parte deste texto foi apresentada no conversatório "Estado Plurinacional e Políticas Indígenas", organizado pela Ordem dos Advogados do Brasil, São Paulo, em 30 de abril de 2024.

NOTAS INDÍGENAS: Resistência, Consciência Histórica e Sabedoria Ancestral

Por Roger Adan Chambi Mayta[1]

Bom dia, pessoal, irmãos e irmãs.

É um prazer estar aqui junto com vocês, com importantes lideranças indígenas do Brasil, como Raoní Kayapó, Ailton Krenak e Eliane Potiguara. Muito obrigado por esta oportunidade. Acredito que este encontro internacional entre povos indígenas é de suma importância para trocar experiências de luta e resistência indígena no território da América Latina, ou como nós chamamos, de Abya Ayala, nome de nosso continente que o povo Cuna do Panamá cuidou por muito tempo, para denominar nosso território com nosso próprio termo. Abya Ayala, terra em constante juventude, Abya Ayala, terra em constante florescimento. Assim, com essa força da juventude e a orientação de nossos maiores, nossos avós, celebro este encontro parabenizando a iniciativa.


Cacique Raoni Kayapó e Ailton Krenak. Brasilia, 2024

Meu nome é Roger Adan, e pertenço à etnia indígena aymara da Bolívia. Sou advogado e estou cursando meu doutorado em Direito Agrário na Universidade Federal de Goiás, no Brasil. O mundo dos advogados da Bolívia, na área andina, há muito tempo vem sendo ocupado por pessoas indígenas pertencentes às etnias aymara e quéchua. No entanto, muitos deles não se reconhecem como aymaras ou quéchuas, eles têm traços indígenas, mães e pais indígenas, têm sangue indígena, mas negam a própria raiz, a própria identidade. Por isso, muitos advogados aymaras e quéchuas, por muito tempo mudaram os sobrenomes indígenas para nomes espanhóis. Eles diziam e dizem: não é possível ser um advogado chamado doutor Quispe ou Mamani, ou seja, um advogado com sobrenome indígena, é melhor ser um doutor Torres, um doutor Fernandez. Assim, aqueles que tinham sobrenomes indígenas, como Phaxi, foram traduzidos para Luna, os Perqa para Paredes, os Quispe para Espejo. Qualquer sobrenome que não fosse indígena era adotado para evitar preconceitos, para não se sentir rejeitado, para tentar se igualar aos brancos.

Alguém pode dizer que hoje, no Estado Plurinacional da Bolívia, que tivemos e temos um governo indígena, já não ocorre isso, mas convido essas pessoas a darem uma volta pelos tribunais e escritórios de advogados na cidade de La Paz e El Alto para perceberem a continuidade. A Bolívia, sim, nos últimos quinze anos passou por muitas mudanças significativas, mas ainda não são suficientes para mudar o racismo estrutural, o colonialismo interno e a colonialidade.

Comece falando sobre isso para destacar como o colonialismo ainda perdura em nossos territórios, como está presente em cada pequeno detalhe do cotidiano. Mas qual é a relação dessa pequena anedota com o painel desta mesa intitulado "América Latina, Cosmovisões Ancestrais, Ciência Indígena e Justiça Climática"? Muito. Uma pessoa que sente vergonha de sua terra, de sua mãe, de seus traços, de seus sobrenomes indígenas, de sua própria ancestralidade, que nega a própria identidade, não vai conseguir compreender as cosmovisões ancestrais, a ciência indígena e, pior ainda, lutar pela justiça climática.

O colonialismo espanhol e português nesta região roubou muitos recursos, como mineração, madeira e outros produtos indígenas, disso sabemos muito. Mas o colonialismo, além de extinguir nossos antepassados, também extinguiu nossos centros de ensino, nossas próprias gramáticas indígenas, nossos cientistas, arquitetos, engenheiros e artistas que construíram Tiwanaku, Machu Picchu, Ollantaytambo, Teotihuacan, Yucatán, os grandes sistemas hídricos da Amazônia, o próprio bioma da Amazônia, a medicina que já realizava operações cerebrais, transfusões de sangue, a metalurgia, o trabalho com ouro e prata, a tecnologia que criou o milho e a batata. Tantas realizações que estão registradas nas crônicas, livros de pesquisa e, principalmente, ainda na sabedoria de nossos avos e na sabedoria de nossos povos.

Assim, o colonialismo implementou uma política para tentar anular nossa sabedoria, nossos conhecimentos, para nos tornar apenas um povo explorado, extinto e com uma baixa autoestima. Com a morte de milhares de nossos yatiris, nossos pajés, nossa história quase foi extinguida. Fomos proibidos de conhecer nossa própria história, por isso, até recentemente, a história de nossos países começava em 12 de outubro de 1492, com a chegada de Cristóvão Colombo, tentando nos fazer esquecer assim a verdadeira história dos aymaras, quéchuas, guarayos, ayoreos, guaranis, tucanos, mayas, entre tantos outros povos indígenas que hoje em dia estamos lutando para reconstruir e fortalecer nossa história que tentaram nos proibir.

O escritor indianista Guillermo Carnero dizia: "O povo que não sabe de onde vem historicamente, não sabe para onde vai historicamente." Daí a importância de conhecer nossa história, daí que nós, como povos indígenas, não só devemos ter consciência de classe, mas o mais importante para nós é ter consciência histórica. Conhecer nosso passado para entender o que foi feito com nossos povos, que lutas nossos avós lideraram, os motivos dessas lutas e só assim saberemos a responsabilidade que temos quando estamos sentados aqui falando, ou quando estamos na universidade, no governo. Saberemos que o que temos hoje não é um presente que caiu do céu, é o resultado do suor e do sangue derramado por nossos pais, mães e avós, que lutaram para que tenhamos mais acessos.


Roger Adan Chambi, Cacique Raoni Kayapó e Eliane Potiguara. Brasilia, 2024

Por isso é importante não se perder no caminho. Conheci muitas pessoas indígenas que, sabendo ler, escrever e tendo acesso ao conhecimento acadêmico, tornaram-se mais brancas do que o próprio branco. Assim como os advogados aymaras e quéchuas mudaram de sobrenome para se sentirem mais brancos, muitos dos meus colegas na academia ainda acreditam que as respostas estão só na Europa, no Ocidente; desejam oferecer soluções para os problemas indígenas usando conceitos estrangeiros, para assim se sentir mais “objetivos”, mais perto da academia branca. Muitos recorrem a Karl Marx para entender o sentido de comunidade indígena, quando poderiam conversar diretamente com a própria comunidade, poderiam observar o entorno e assim perceber que não precisamos ir tão longe para encontrar respostas para nossos problemas. Com isso, não estou dizendo que não devemos ler a produção acadêmica e literária europeia e ocidental, não, apenas que devemos não colocar esse conhecimento no centro, apenas usá-lo como mais uma referência entre tantos outros conhecimentos. Dipesh Chakrabarty, diria que devemos provincializar o conhecimento europeu.

Lembro-me de uma comunidade indígena no município de Huari, departamento de Oruro, na Bolívia. Uma fundação filantrópica não entendia por que o povo não queria que a fundação construísse uma escola para a própria comunidade. O povo não queria porque diziam assim: nós sabemos que vocês construíram uma escola na comunidade vizinha, e percebemos que as crianças, depois de sair da escola, não queriam mais falar a própria língua, sentiam vergonha de nossos costumes, e então foram morar nas cidades, e por isso essa comunidade agora ficou vazia. Então, a escola, a educação, que sempre falamos que é libertadora, pode também, e nós, como povos indígenas, sabemos muito disso, pode ser também alienadora, pode apagar a própria cultura de nossos povos, pode fazer-nos esquecer de nossas cosmovisões ancestrais.

Mas o que são nossas cosmovisões ancestrais? Muitos acham que são práticas antigas e que apenas os mais antigos conhecem, mas não é tão simples assim. Para compreender nossas cosmovisões ancestrais, não precisamos só procurar nos grandes livros de história e antropologia. Nós, como indígenas, poderíamos começar olhando nosso entorno, observando as práticas de nossas mães, nossos pais, e tomar consciência de como fomos educados, de como nos relacionamos com o ambiente e a natureza. Nossa cosmovisão está presente em nosso cotidiano. Só precisamos reconhecê-la e atribuir-lhe o sentido hierárquico que merece.

Por isso, quando minha mãe olha para o céu, observa as nuvens dispersas, ela diz que “amanhã vai chover, recolhe as roupas do varal”. Quando ouve o canto do ch’iwanku, que é um pássaro que canta alto, ela diz que alguém nos vai visitar. Quando eu era criança e subia a montanha com minha mãe, ela me ensinava que temos que respeitar as montanhas, porque elas são nossas avós; “temos que respeitá-las para que elas nos protejam no caminho, para que não peguemos alguma enfermidade”. Minha mãe dizia que não devemos machucar a batata durante a colheita porque ela chora, ela sente.

Portanto, temos muitas coisas no cotidiano que nos fazem entender que nossa cosmovisão ancestral é principalmente um modo de nos relacionarmos, um modo de ser e estar com a natureza como ser vivo, com nossa mãe, a Pachamama. Mas o pensamento hegemônico nas universidades, geralmente anti-indígena, nos insinuou que essa forma de se relacionar é coisa de selvagens, de povos atrasados, de qualquer coisa menos ciência. Por isso, quando o indígena entra na academia, muitas vezes quer mudar, quer deixar de ser indígena, quer aprender o outro para se tornar no outro. Eu sei que não há nada de errado em aprender os conhecimentos do outro, mas primeiro temos que ter as raízes bem firmes para depois florescer até onde desejamos e, assim, usar o conhecimento, independentemente de sua origem, para nossa libertação.


Ailton Krenak, Roger Adan Chambi e Eliane Potiguara. Brasilia, 2024

Nas cartas que o escritor indigenista Bonfil Batalla, do México, escreveu para o teórico indianista boliviano Fausto Reinaga nos anos 1979, dizia sem medo o seguinte:

“Elaboramos um plano de trabalho bastante heterodoxo (eu diria herege) que busca que esse grupo de estudantes recupere e fundamente sua identidade e, ao mesmo tempo, se aproprie criticamente dos conhecimentos que considerem úteis da linguística, da história e da antropologia no estilo ocidental, para que os incorporem à sua própria cultura indígena e os utilizem como instrumentos de sua luta de libertação. Conheço bem os riscos, ou acredito conhecê-los; se falharmos, teremos criado mais uma geração de oportunistas que, disfarçados de índios, buscarão apenas seu próprio benefício e aproveitarão sua própria situação para acentuar a exploração de seu povo. Mas se acertarmos, meu querido don Fausto, se acertarmos...” 

Então, é importante o papel do indígena na universidade para não se tornar algo exótico. Temos muito a trabalhar para fortalecer e tornar cotidiano o entendimento de que nossos povos têm uma cosmovisão indígena, uma filosofia indígena, e tecnologias indígenas. Devemos lembrar que nossos povos tiveram e têm ciência, e que além do colonialismo, que pretendia nos fazer sentir vergonha de nossa cultura. Como diria a socióloga boliviana Silvia Rivera Cusicanqui, nós, os indígenas, fomos, somos oprimidos, mas nunca vencidos.

Para concluir, tudo o que estou falando de forma resumida, acredito que precisa ser debatido e aprofundado com urgência, dada a crise climática que afeta principalmente nossos territórios. Nesse contexto, os cientistas indígenas desempenham um papel importante para enfrentar essa situação. Não é verdade que a mudança climática afete a todos igualmente; isso é mentira. Existem povos que sofrem consequências mais severas. Há um racismo ambiental em que os territórios dos povos indígenas são os mais afetados pela contaminação da mineração e pela expansão da fronteira agrícola. O extrativismo ataca diariamente as terras indígenas, principalmente na Amazônia, por serem férteis.

Já ouvimos muitas supostas alternativas para esse problema, já ouvimos muito falar sobre desenvolvimento sustentável. Até tivemos e temos governos que criaram uma série de leis de proteção à natureza, concederam direitos à natureza, criaram leis sobre os direitos da Pachamama, até discursaram sobre o Bom Viver. Mas a realidade mostra outra coisa; a realidade mostra que o racismo ambiental não mudou, ainda está presente. A realidade também mostra, e nós, os andinos aymaras da Bolívia, podemos falar com propriedade e tristeza, que as revoluções jurídicas não são suficientes para uma mudança estrutural. Não depende apenas do Estado; depende muito da consciência de nosso povo, que aposta e acredita em um outro horizonte.

Não alcançaremos justiça climática se nós, os próprios indígenas, não pensarmos, pesquisarmos e desenvolvermos nossas próprias estratégias de luta e cuidado com nosso território. Precisamos de parcerias, sim, mas nós conhecemos melhor nossas necessidades, e devemos liderar as respostas. O pensador indianista aymara-quechua da Bolívia, Fausto Reinaga, costumava dizer o seguinte, e com isso concluo minha fala:

“O que desejo enfatizar é que: para saber o que é ser indígena, é preciso ser indígena. Porque aquele que é apenas "culturalmente" indígena só pode "revelar" o indígena. Mas aquele que é indígena de carne e coração, cosmos e raça, não apenas "revela" o indígena, mas também o rebela. ”

Muito obrigado. Jallalla!  


Brasília, 20 de março de 2024

[1] Parte deste texto foi apresentada no painel 'Justiça Climática, Ciência Indígena e Cosmovisões Ancestrais' durante o Encontro Internacional de Ciência Indígena e Justiça Climática, em Brasília 2024. 

EL DIABLO DE SALAMANCA

 

Llegamos a Salamanca junto al otoño. El viento no solo despeinaba nuestros cabellos, sino que emitía un extraño sonido más cercano a las almas en pena que al silbido al que estaba acostumbrado en las pampas andinas. Todo era nuevo para mí en esa ciudad antigua. Caminando entre sus calles y plazuelas, no podía evitar pensar en Miguel de Cervantes, Bartolomé de las Casas, Miguel de Unamuno, entre tantos otros que pasaron por esta ciudad, que alberga la tercera universidad más antigua de Europa y la primera de España.

Salamanca, a diferencia de Barcelona y Madrid, es una ciudad pequeña pero repleta de edificaciones góticas, renacentistas y barrocas. Ciudad universitaria de cafés con bocadillos por las mañanas y de tuneros enamorados al atardecer. Ciudad de cigüeñas y de tímidos sapitos que cantan a las orillas del río Tormes. ¿Quién iba a imaginar que, en esta tranquila ciudad de Castilla y León, sentiría cerca al diablo?


Ciudad de Salamanca. 2023.

Hablo en serio. Primero sentí un mareo y luego un dolor de cabeza. Estaba claro que no debíamos estar en esa sección. Aprovechamos que no había control de seguridad. La calle estaba desierta y nos situamos en medio de lo que en su momento fue la cripta de la extinta iglesia de San Cipriano, más conocida como la Cueva de Salamanca.

En ese momento comprendía poco acerca de ese lugar, pero no era necesario entenderlo racionalmente, más bien, era cuestión de sentirlo. Ustedes me entienden, hay lugares que emanan energías pesadas, que repelen. No, no es cosa de hippies; hay espacios que guardan pasados sombríos. Mi curiosidad se sobrepuso a mi malestar y me quedé solo en el lugar. Parado frente a los peldaños de la cueva, justo en el medio, vi a un hombre de arrugas que fumaba un cigarrillo mientras me miraba. Tenía el pelo largo y estaba sereno vestido de negro. Comencé a transpirar y no pude ver más su rostro. Lo esquivé y volví a mirarlo de reojo; él permanecía quieto, sereno, fumando.

Me retiré del lugar para buscar testigos, y cuando regresé acompañado, ya no estaba. ¿Quién podría estar ahí? ¿Por qué mis manos temblaban?

Conversando posteriormente con los salmantinos, nos enteramos de que la leyenda cuenta que la Cueva de Salamanca fue construida por el propio Hércules y posteriormente utilizada por los magos celtas como un espacio de enseñanza de las ciencias ocultas. Si bien Cervantes, de la Barca y Unamuno hicieron referencia a este intrigante lugar de diferentes formas, la narrativa popular sugiere que en esa cueva se impartían las ciencias prohibidas por la iglesia católica durante varios siglos. Se dice que era el propio diablo, tomando la forma de un sacristán, quien daba clases por las noches a siete alumnos, de los cuales uno, al final, se quedaba a su servicio. Este diablo, transformado en sacristán, se llamaba nada más y nada menos que Clemente Potosí. ¡Vaya apellido!

Nos dijeron también que algunos logran ver a Don Enrique de Villena, quien supuestamente fue un estudiante elegido por el diablo que logró escapar de su dominio, y como castigo, se pasea por el lugar hasta la fecha. No creo que la figura que vi se asemeje a eso, ni mucho menos al diablo. Sin embargo, sí sentí una oscura sensación en el cuerpo, y esas historias salmantinas me estremecieron en ese contexto de vientos de otoño y catedrales góticas.


Junto a la Cueva de Salamanca. 2023.

Salamanca, al igual que muchas otras ciudades europeas, vive y comercia con su pasado, sus mitos, sus arquitecturas, sus personajes plasmados en novelas y en lo que hemos denominado 'historia universal'. Esta ciudad es Patrimonio de la Humanidad, lo que conlleva la responsabilidad de preservar las características de la localidad, como su estilo de siglos lejanos, sus personajes e historias. De regreso a Barcelona pensaba en mi ciudad, El Alto, esa ciudad donde no hay autoridad que le ponga regla; esa ciudad que es un devenir, esa ciudad que está creando su propia historia, arquitectura, artistas y mitos. Mirando los molinos de viento desde la ventana del tren, me preguntaba: ¿Qué relatarán dentro de cien, doscientos o cuatrocientos años sobre mi ciudad andina? ¿Quiénes serán sus personajes importantes? ¿Qué lugares llamarán la atención a los forasteros? ¿Qué mitos perdurarán? 

Roger Adan Chambi Mayta. Barcelona, invierno de 2024.