Por
Roger Adan Chambi Mayta[1]
Bom dia, pessoal,
irmãos e irmãs.
É um prazer estar
aqui junto com vocês, com importantes lideranças indígenas do Brasil, como
Raoní Kayapó, Ailton Krenak e Eliane Potiguara. Muito obrigado por esta
oportunidade. Acredito que este encontro internacional entre povos indígenas é
de suma importância para trocar experiências de luta e resistência indígena no
território da América Latina, ou como nós chamamos, de Abya Ayala, nome de nosso continente que o povo Cuna do Panamá
cuidou por muito tempo, para denominar nosso território com nosso próprio
termo. Abya Ayala, terra em constante
juventude, Abya Ayala, terra em
constante florescimento. Assim, com essa força da juventude e a orientação de
nossos maiores, nossos avós, celebro este encontro parabenizando a iniciativa.
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Cacique Raoni Kayapó e Ailton Krenak. Brasilia, 2024 |
Meu nome é Roger
Adan, e pertenço à etnia indígena aymara da Bolívia. Sou advogado e estou
cursando meu doutorado em Direito Agrário na Universidade Federal de Goiás, no
Brasil. O mundo dos advogados da Bolívia, na área andina, há muito tempo vem
sendo ocupado por pessoas indígenas pertencentes às etnias aymara e quéchua. No
entanto, muitos deles não se reconhecem como aymaras ou quéchuas, eles têm traços
indígenas, mães e pais indígenas, têm sangue indígena, mas negam a própria
raiz, a própria identidade. Por isso, muitos advogados aymaras e quéchuas, por
muito tempo mudaram os sobrenomes indígenas para nomes espanhóis. Eles diziam e
dizem: não é possível ser um advogado chamado doutor Quispe ou Mamani, ou seja,
um advogado com sobrenome indígena, é melhor ser um doutor Torres, um doutor
Fernandez. Assim, aqueles que tinham sobrenomes indígenas, como Phaxi, foram
traduzidos para Luna, os Perqa para Paredes, os Quispe para Espejo. Qualquer
sobrenome que não fosse indígena era adotado para evitar preconceitos, para não
se sentir rejeitado, para tentar se igualar aos brancos.
Alguém pode dizer
que hoje, no Estado Plurinacional da Bolívia, que tivemos e temos um governo
indígena, já não ocorre isso, mas convido essas pessoas a darem uma volta pelos
tribunais e escritórios de advogados na cidade de La Paz e El Alto para
perceberem a continuidade. A Bolívia, sim, nos últimos quinze anos passou por
muitas mudanças significativas, mas ainda não são suficientes para mudar o
racismo estrutural, o colonialismo interno e a colonialidade.
Comece falando
sobre isso para destacar como o colonialismo ainda perdura em nossos
territórios, como está presente em cada pequeno detalhe do cotidiano. Mas qual
é a relação dessa pequena anedota com o painel desta mesa intitulado "América
Latina, Cosmovisões Ancestrais, Ciência Indígena e Justiça Climática"?
Muito. Uma pessoa que sente vergonha de sua terra, de sua mãe, de seus traços,
de seus sobrenomes indígenas, de sua própria ancestralidade, que nega a própria
identidade, não vai conseguir compreender as cosmovisões ancestrais, a ciência
indígena e, pior ainda, lutar pela justiça climática.
O colonialismo
espanhol e português nesta região roubou muitos recursos, como mineração,
madeira e outros produtos indígenas, disso sabemos muito. Mas o colonialismo,
além de extinguir nossos antepassados, também extinguiu nossos centros de
ensino, nossas próprias gramáticas indígenas, nossos cientistas, arquitetos,
engenheiros e artistas que construíram Tiwanaku, Machu Picchu, Ollantaytambo,
Teotihuacan, Yucatán, os grandes sistemas hídricos da Amazônia, o próprio bioma
da Amazônia, a medicina que já realizava operações cerebrais, transfusões de
sangue, a metalurgia, o trabalho com ouro e prata, a tecnologia que criou o
milho e a batata. Tantas realizações que estão registradas nas crônicas, livros
de pesquisa e, principalmente, ainda na sabedoria de nossos avos e na sabedoria
de nossos povos.
Assim, o
colonialismo implementou uma política para tentar anular nossa sabedoria,
nossos conhecimentos, para nos tornar apenas um povo explorado, extinto e com
uma baixa autoestima. Com a morte de milhares de nossos yatiris, nossos pajés, nossa história quase foi extinguida. Fomos
proibidos de conhecer nossa própria história, por isso, até recentemente, a
história de nossos países começava em 12 de outubro de 1492, com a chegada de Cristóvão
Colombo, tentando nos fazer esquecer assim a verdadeira história dos aymaras,
quéchuas, guarayos, ayoreos, guaranis, tucanos, mayas, entre tantos outros
povos indígenas que hoje em dia estamos lutando para reconstruir e fortalecer
nossa história que tentaram nos proibir.
O escritor indianista Guillermo Carnero dizia: "O povo que não sabe de onde vem historicamente, não sabe para onde vai historicamente." Daí a importância de conhecer nossa história, daí que nós, como povos indígenas, não só devemos ter consciência de classe, mas o mais importante para nós é ter consciência histórica. Conhecer nosso passado para entender o que foi feito com nossos povos, que lutas nossos avós lideraram, os motivos dessas lutas e só assim saberemos a responsabilidade que temos quando estamos sentados aqui falando, ou quando estamos na universidade, no governo. Saberemos que o que temos hoje não é um presente que caiu do céu, é o resultado do suor e do sangue derramado por nossos pais, mães e avós, que lutaram para que tenhamos mais acessos.
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Roger Adan Chambi, Cacique Raoni Kayapó e Eliane Potiguara. Brasilia, 2024 |
Lembro-me de uma
comunidade indígena no município de Huari, departamento de Oruro, na Bolívia.
Uma fundação filantrópica não entendia por que o povo não queria que a fundação
construísse uma escola para a própria comunidade. O povo não queria porque
diziam assim: nós sabemos que vocês construíram uma escola na comunidade
vizinha, e percebemos que as crianças, depois de sair da escola, não queriam
mais falar a própria língua, sentiam vergonha de nossos costumes, e então foram
morar nas cidades, e por isso essa comunidade agora ficou vazia. Então, a
escola, a educação, que sempre falamos que é libertadora, pode também, e nós,
como povos indígenas, sabemos muito disso, pode ser também alienadora, pode
apagar a própria cultura de nossos povos, pode fazer-nos esquecer de nossas
cosmovisões ancestrais.
Mas o que são
nossas cosmovisões ancestrais? Muitos acham que são práticas antigas e que
apenas os mais antigos conhecem, mas não é tão simples assim. Para compreender
nossas cosmovisões ancestrais, não precisamos só procurar nos grandes livros de
história e antropologia. Nós, como indígenas, poderíamos começar olhando nosso
entorno, observando as práticas de nossas mães, nossos pais, e tomar
consciência de como fomos educados, de como nos relacionamos com o ambiente e a
natureza. Nossa cosmovisão está presente em nosso cotidiano. Só precisamos
reconhecê-la e atribuir-lhe o sentido hierárquico que merece.
Por isso, quando
minha mãe olha para o céu, observa as nuvens dispersas, ela diz que “amanhã vai
chover, recolhe as roupas do varal”. Quando ouve o canto do ch’iwanku, que é um pássaro que canta
alto, ela diz que alguém nos vai visitar. Quando eu era criança e subia a
montanha com minha mãe, ela me ensinava que temos que respeitar as montanhas,
porque elas são nossas avós; “temos que respeitá-las para que elas nos protejam
no caminho, para que não peguemos alguma enfermidade”. Minha mãe dizia que não
devemos machucar a batata durante a colheita porque ela chora, ela sente.
Portanto, temos
muitas coisas no cotidiano que nos fazem entender que nossa cosmovisão
ancestral é principalmente um modo de nos relacionarmos, um modo de ser e estar
com a natureza como ser vivo, com nossa mãe, a Pachamama. Mas o pensamento
hegemônico nas universidades, geralmente anti-indígena, nos insinuou que essa
forma de se relacionar é coisa de selvagens, de povos atrasados, de qualquer
coisa menos ciência. Por isso, quando o indígena entra na academia, muitas
vezes quer mudar, quer deixar de ser indígena, quer aprender o outro para se
tornar no outro. Eu sei que não há nada de errado em aprender os conhecimentos
do outro, mas primeiro temos que ter as raízes bem firmes para depois florescer
até onde desejamos e, assim, usar o conhecimento, independentemente de sua
origem, para nossa libertação.
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Ailton Krenak, Roger Adan Chambi e Eliane Potiguara. Brasilia, 2024 |
Nas cartas que o
escritor indigenista Bonfil Batalla, do México, escreveu para o teórico
indianista boliviano Fausto Reinaga nos anos 1979, dizia sem medo o seguinte:
“Elaboramos um plano de trabalho bastante heterodoxo (eu diria herege) que busca que esse grupo de estudantes recupere e fundamente sua identidade e, ao mesmo tempo, se aproprie criticamente dos conhecimentos que considerem úteis da linguística, da história e da antropologia no estilo ocidental, para que os incorporem à sua própria cultura indígena e os utilizem como instrumentos de sua luta de libertação. Conheço bem os riscos, ou acredito conhecê-los; se falharmos, teremos criado mais uma geração de oportunistas que, disfarçados de índios, buscarão apenas seu próprio benefício e aproveitarão sua própria situação para acentuar a exploração de seu povo. Mas se acertarmos, meu querido don Fausto, se acertarmos...”
Então, é
importante o papel do indígena na universidade para não se tornar algo exótico.
Temos muito a trabalhar para fortalecer e tornar cotidiano o entendimento de
que nossos povos têm uma cosmovisão indígena, uma filosofia indígena, e
tecnologias indígenas. Devemos lembrar que nossos povos tiveram e têm ciência,
e que além do colonialismo, que pretendia nos fazer sentir vergonha de nossa
cultura. Como diria a socióloga boliviana Silvia Rivera Cusicanqui, nós, os
indígenas, fomos, somos oprimidos, mas nunca vencidos.
Para concluir,
tudo o que estou falando de forma resumida, acredito que precisa ser debatido e
aprofundado com urgência, dada a crise climática que afeta principalmente
nossos territórios. Nesse contexto, os cientistas indígenas desempenham um
papel importante para enfrentar essa situação. Não é verdade que a mudança
climática afete a todos igualmente; isso é mentira. Existem povos que sofrem
consequências mais severas. Há um racismo ambiental em que os territórios dos
povos indígenas são os mais afetados pela contaminação da mineração e pela
expansão da fronteira agrícola. O extrativismo ataca diariamente as terras
indígenas, principalmente na Amazônia, por serem férteis.
Já ouvimos muitas
supostas alternativas para esse problema, já ouvimos muito falar sobre
desenvolvimento sustentável. Até tivemos e temos governos que criaram uma série
de leis de proteção à natureza, concederam direitos à natureza, criaram leis
sobre os direitos da Pachamama, até
discursaram sobre o Bom Viver. Mas a realidade mostra outra coisa; a realidade
mostra que o racismo ambiental não mudou, ainda está presente. A realidade
também mostra, e nós, os andinos aymaras da Bolívia, podemos falar com
propriedade e tristeza, que as revoluções jurídicas não são suficientes para
uma mudança estrutural. Não depende apenas do Estado; depende muito da consciência
de nosso povo, que aposta e acredita em um outro horizonte.
Não alcançaremos
justiça climática se nós, os próprios indígenas, não pensarmos, pesquisarmos e
desenvolvermos nossas próprias estratégias de luta e cuidado com nosso
território. Precisamos de parcerias, sim, mas nós conhecemos melhor nossas
necessidades, e devemos liderar as respostas. O pensador indianista
aymara-quechua da Bolívia, Fausto Reinaga, costumava dizer o seguinte, e com
isso concluo minha fala:
“O
que desejo enfatizar é que: para saber o que é ser indígena, é preciso ser indígena.
Porque aquele que é apenas "culturalmente" indígena só pode
"revelar" o indígena. Mas aquele que é indígena de carne e coração,
cosmos e raça, não apenas "revela" o indígena, mas também o rebela. ”
Muito obrigado. Jallalla!
Brasília, 20 de março de 2024
[1] Parte deste texto foi apresentada no painel 'Justiça Climática, Ciência Indígena e Cosmovisões Ancestrais' durante o Encontro Internacional de Ciência Indígena e Justiça Climática, em Brasília 2024.