Por Roger Adan Chambi Mayta [1]
Foi uma grande surpresa para mim
quando Felipe comentou que a história que narrei, durante uma palestra sobre Bem
Viver na PUC – Campinas, inspirou a criação de um livro que analisa e explica o
fenômeno da hermenêutica. Essa história foi uma experiência minha que aconteceu
aos 25 anos de idade, escalando com uma amiga o Huayna Potosí, nevado
característico da cidade de El Alto, na Bolívia. Nas linhas seguintes, quero
problematizar alguns pontos importantes que Felipe discute em seu texto,
relacionando-o a algumas experiências representativas da minha experiência como
aymara boliviano no Brasil. Acredito que essas reflexões podem muito bem situar
a multiplicidade de interpretações, lugares de fala e tradições que se reúnem
no cotidiano brasileiro, sob olhares de um estrangeiro.
Podem imaginar a travessia que um
estrangeiro, indígena, de idioma distinto ao português, experimenta na cidade
de São Paulo? Quais seriam as condições deste choque cultural? Nos termos de
Felipe: Como as montanhas se transformam quando interagem entre si em um
contexto plural?
Minha chegada ao Brasil como aymara
boliviano foi marcada não apenas pela mudança drástica na temperatura e na
paisagem de São Paulo, mas também pelos estereótipos e ignorância de alguns
brasileiros em relação à Bolívia. Lembro-me de quando peguei o metrô da Luz
pela primeira vez em direção a Butantã. Dentro do metrô, um sujeito estava
olhando fixamente para mim e me perguntou se eu era chileno, eu disse que não,
que eu era da Bolívia. Surpreso, o sujeito me disse com muita admiração
"Bolívia? Onde moram os vikings!". Não sabia se estava entendendo bem
suas palavras. Perguntei à minha companheira brasileira, que estava comigo na
ocasião, se o que ele estava dizendo era que os vikings viviam na Bolívia. Ela
respondeu que sim, igualmente estranhando a pergunta. Atordoado com as palavras
do sujeito, naquele momento surgiu a pergunta: o que é a Bolívia no imaginário
das pessoas desta cidade?
Embora o fato de uma pessoa ligar
os vikings à Bolívia possa ser um caso muito particular (e mais do que qualquer
outra coisa, essa anedota possa mostrar como o Brasil está familiarizado com
seus países vizinhos), sem dúvida o estereótipo generalizado do boliviano em
São Paulo é do costureiro, que muitas vezes trabalha em condições
semi-escravas. Somando-se ao caráter étnico, o imaginário do boliviano se consolida
como migrante majoritariamente indígena, que chega ao Brasil em busca de
trabalho.
“Muitos
precisam mover montanhas para construir uma realidade menos sofrida e mais
identitária”, conta-nos Felipe, e parece
que os trabalhadores bolivianos em São Paulo entenderam bem, pois formaram
territórios, “montanhas”, onde podem encontrar espaços comuns de interpretação
e um sentido de vida. Arrisco afirmar
que parte da identidade boliviana pode ser sentida em suas cores e formas, por
exemplo, na Rua Coimbra do bairro Brás em São Paulo.
Em outra ocasião, indo para o
município de Santa Fé do Sul, acompanhando um amigo em uma viagem à casa de
seus pais, ele ligou para o celular do pai para avisar que estava chegando com
um boliviano aymara indígena. Lembro-me de ouvir a pergunta de seu pai:
“Indígena? Mas ele usa roupas?". Não pude conter o riso. Os aymaras da
Bolívia, assentados nas encostas das montanhas nevadas e a mais de 4.000 metros
acima do nível do mar, usamos muitas roupas. Naquela época, além de entender que
interpretamos o mundo a partir de nossas localidades, com essa experiência,
pude entender o que R. Linton disse: “o peixe só se dá conta que vive na água
quando é retirado dela”. Percebi as peculiaridades do meu território, da minha
cultura, da minha maneira de ser indígena, da minha andinidade, da minha
montanha, por estar fora dela, por morar no Brasil.
É verdade que o mundo é plural e
que existem diferentes maneiras de entendê-lo. Deslocar territorialmente é um
bom exercício para justificá-lo. Olhamos com olhos construídos por nossas
tradições, nossos valores e preconceitos. No entanto, esses olhos, como Felipe
bem menciona, podem ser violentos em muitos casos quando não há consciência da
pluralidade, de nossa diversidade como seres humanos. A esse respeito, lembro
que um dia participei de um evento acadêmico na Universidade de São Paulo (USP)
e alguns colegas brasileiros acreditavam que eu era da Argentina, Equador,
México ou Chile, nenhum deles chegou a mencionar a possibilidade de que eu
fosse boliviano. Considero que eles me relacionaram com esses países não porque
eu não parecesse um boliviano, mas porque não era comum um boliviano, indígena
aymara - etnia andina presente em diversos países que compartilham as
cordilheiras -, ocupar esses espaços de debates acadêmicos. Entendi então que,
além das disputas na academia brasileira, os bolivianos nas salas de aula travam
uma luta ainda maior, a dos sensos comuns, a dos imaginários e dos
estereótipos.
Felipe sustenta que as montanhas
não devem ser transformadas em símbolos de divisão. Eu não poderia concordar
mais. Viemos de diferentes territórios, de distintas experiências. Que mais do
que uma ameaça deve ser entendida como uma fortaleza, um taypi que no
idioma aymara é o centro de encontros e equilíbrios, como um sinal de uma
sociedade em constante movimento e diálogo com os outros na construção de um
nós.
Agradeço a Felipe pelo convite para
escrever este posfácio. Que seja um motivo a mais para fortalecer esses
diálogos entre países vizinhos e abrir nossas montanhas.
JALLALLA!
El Alto, Bolívia. 5 de
janeiro de 2020.
Camino al nevado Huayna Potosí |
[1] Este texto fue publicado como
posfácio del libro “O Caminho da Montanha; uma metáfora da compreensão humana”, del
autor Felipe Souto.
Año 2020, editorial Saber Criativo. Brasil.